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Pagode como símbolo de representatividade

Atualizado: 5 de mai.

“O pagode serviu para mim como um apoio de identidade”, diz Ana Paula Carvalho Xavier, mulher de fala suave e olhos que brilham quando fala do pagode romântico — sua paixão desde a juventude.


Ana Paula nasceu em Araçatuba, interior de São Paulo, mas sua história começa mesmo em Braúna, cidade vizinha com pouco mais de cinco mil habitantes. Foi lá que, no final de 1987, Hilda, uma jovem de apenas 14 anos, descobriu que estava grávida. Não sabia quem era o pai da criança e tampouco contava com apoio familiar ou social. Sozinha e sem perspectivas, começou a procurar por alguém que pudesse cuidar de seu bebê.


Com cerca de quatro meses de gestação, Hilda passou a oferecer a criança que carregava no ventre aos moradores da cidade. Foi assim que chegou até Isabel, cunhada de Delicia Carvalho Xavier. Isabel ouviu a história e, sensibilizada, resolveu agir: aproximou Hilda e Delicia, iniciando ali um laço que se estreitava com o passar dos meses.


No dia 6 de agosto de 1988, Ana Paula veio ao mundo, nas dependências da Santa Casa de Misericórdia. Logo após o parto, Delícia foi avisada e correu até o hospital para conhecer a menina que, dali em diante, seria sua filha.


Mãe e filha sentavam juntas na área de casa durante as tardes. Por: Arquivo pessoal
Mãe e filha sentavam juntas na área de casa durante as tardes. Por: Arquivo pessoal

Infância


“Durante a minha infância, fui muito mimada, “tive do bom e do melhor”, relembra Ana Paula, com nostalgia.


Cresceu cercada de carinho, em um lar tranquilo e afetuoso. Ao lado dos irmãos, Celso e Silmeia, dividiu risadas, brincadeiras e momentos inesquecíveis. 


Murilo Xavier Pires, seu pai adotivo, era encanador e fiel devoto da igreja católica. Homem simples e de coração generoso, foi uma figura fundamental em sua formação. Entre os dois, criaram-se laços profundos. Aos domingos, depois da missa, Murilo mantinha um ritual que se tornaria uma das melhores lembranças da infância de Ana: levava a filha para tomar sorvete — o seu doce preferido. E naquele gesto simples, havia tudo o que uma criança poderia querer: amor, presença e cuidado.


Delicia Carvalho Xavier era cozinheira em escolas de ensino infantil e, assim como o marido, também era devota à igreja católica. Mulher de fibra, dedicava-se com afinco à família. Mãe "coruja" por excelência, não media esforços para cuidar dos filhos.


Silmeia e Celso, seus dois primeiros, tinham os cabelos lisos, iguais aos dela. Já Ana Paula, com seus cachos volumosos, trazia uma novidade para o universo doméstico.


Delicia, já nos seus quarenta e tantos anos, era uma mulher madura, com os filhos praticamente criados quando Ana chegou. Sua vivência, no entanto, não incluía referências sobre como cuidar de cabelos cacheados. Sem informação, sem produtos adequados e com pouco tempo, fez o que pôde. E, como nem tudo são flores, optou por manter o cabelo da pequena Ana sempre bem curtinho — uma solução prática, ainda que distante do ideal. Apesar disso, o amor nunca faltou. 


Os aniversários eram repletos de doces, alegria e amor. Por: Arquivo pessoal.
Os aniversários eram repletos de doces, alegria e amor. Por: Arquivo pessoal.

Segunda Infância


Na segunda infância, a relação de Ana com o próprio cabelo começou a pesar em sua autoestima. O que antes era só incômodo virou desconforto.


Morava em um bairro próximo ao centro da cidade, onde a maioria da vizinhança era branca. A escola, no mesmo bairro, refletia o mesmo padrão: colegas de pele clara, cabelos lisos, traços distantes dos seus. Sem referências negras no cotidiano, Ana crescia sem se ver em ninguém ao seu redor.


Sentia-se deslocada, não por escolha, mas pela ausência de pertencimento. E, nessa tentativa de se encaixar, passou a desejar aquilo que via como certo, como belo, como normal. Queria ter o cabelo como o das colegas, como o dos irmãos. Queria, enfim, não chamar atenção por ter o cabelo diferente. A partir disso, começou a sonhar com o alisamento, pensando que finalmente, então, conseguiria ser igual a todos ao seu redor.

Começou a sonhar com o alisamento como quem sonha com um passaporte para um outro lugar — um lugar onde talvez fosse mais fácil ser aceita, ser incluída, ser igual.


Suas amigas iam com frequência em sua casa para brincar. Por: arquivo pessoal.
Suas amigas iam com frequência em sua casa para brincar. Por: arquivo pessoal.

Pré-Adolescência


Foi apenas no início da pré-adolescência que Ana Paula teve um contato mais significativo com a negritude. Aos domingos, costumava assistir ao programa “Domingo Legal”, apresentado por Gugu Liberato, que trazia apresentações de grupos formados por homens negros, como Só Pra Contrariar, Raça Negra e É o Tchan. Consumir conteúdo de pessoas negras na televisão, foi fator crucial para contribuir com a representatividade e com o sentimento de pertencimento “lá eu via pessoas com traços parecidos com os meus”, conta Ana Paula.


Desde pequena, Paula sempre amou dançar. Cresceu nos anos 1990, período em que grandes grupos de axé movimentaram o Brasil com músicas alegres e danças contagiantes. Além da dança, Paulinha também era apaixonada por pagode romântico, ao perceber o gosto pelo estilo musical, seus pais compraram discos vinis e fitas para ela, com o objetivo de nutrir esse sentimento – o apoio dentro de casa sempre foi presente.


Adolescência


É geralmente nessa fase da vida que surgem os primeiros “crushes” — e com Paulinha não foi diferente, era apaixonada pelo grupo “Só Pra Contrariar” e, em especial, pelo vocalista Alexandre Pires. Nele, via mais do que um cantor: enxergava um símbolo de beleza, autenticidade e orgulho. Pela primeira vez, se via representada em alguém que admirava.


O pagode romântico, além de embalar seus sentimentos, foi também uma chave importante para sua identidade. Através das letras, dos clipes e dos artistas, Ana começou a ter contato com uma diversidade que não encontrava no dia a dia. Aos poucos, os traços que antes tentava esconder passaram a ter outro significado. Começou a ver beleza em outras formas de ser e de existir — sobretudo nas pessoas pretas. De maneira sutil, mas poderosa, foi desconstruindo o pensamento enraizado que associava beleza apenas aos traços brancos.


Aos 14 anos, sua vida deu outra guinada. Foi quando conheceu Valdir — um rapaz de 19 anos, alto, de pele negra, apaixonado por rap. Bastaram alguns encontros para que se apaixonassem. O namoro começou rápido, e junto com o relacionamento, veio também uma nova forma de se enxergar no mundo.


Paula entrou para a família de Valdir e, pela primeira vez, passou a conviver intimamente com pessoas negras que tinham traços parecidos com os seus. Ali, encontrou identificação e afeto. Começou a se reconhecer com mais carinho, com mais verdade.


E Valdir, por sua vez, mergulhou no universo dela. Por influência de Paula, passou a ouvir mais pagode romântico — uma trilha sonora que acabou marcando os dois. Na época, em 2002, Valdir tinha um carro equipado com som automotivo personalizado. Era nesse carro que passavam horas ouvindo juntos suas músicas preferidas.


“A música ‘Depois do Prazer’, do SPC, me faz lembrar da época do início do nosso namoro”, conta Ana, com a voz carregada de nostalgia. E na lembrança, parece reviver aquele tempo em que o amor, a música e o reconhecimento de si mesma começaram a caminhar lado a lado.


O casal coleciona memórias juntos há mais de 20 anos. Por: Arquivo Pessoal
O casal coleciona memórias juntos há mais de 20 anos. Por: Arquivo Pessoal

Gravidez na adolescência


Em junho de 2005, uma nova fase começou na vida de Ana Paula: a gravidez. A notícia veio carregada de sentimentos — alegria, medo, expectativa — e, junto com ela, surgiram também os primeiros grandes desafios da vida adulta.


O primeiro obstáculo surgiu dentro de casa. Seu pai, Murilo, até então sempre tão presente e afetuoso, reagiu com resistência. Disse que ela não deveria casar com um homem preto. “Seu filho vai nascer com o cabelo ruim”, disparou. A fala atravessou Ana como um corte profundo. Era o peso do racismo — estrutural e íntimo — escancarado no ambiente onde ela mais esperava acolhimento.


Ao mesmo tempo, Ana enfrentava o dilema de continuar ou não seus estudos. Estava no último ano do Ensino Médio, prestes a se formar, mas o medo do preconceito dentro da escola, agora como uma jovem grávida, a fez cogitar a desistência. Sentia-se vulnerável, exposta, como se carregasse um fardo diante dos olhos dos outros.


Foi Valdir quem a segurou firme pela mão. Com amor e paciência, mostrou que a educação era também um caminho de liberdade. Incentivou, apoiou, esteve presente em cada passo. E foi com esse apoio que Ana escolheu seguir.


Não só terminou os estudos — como fez isso com excelência. Ao final do ano letivo, foi surpreendida com o reconhecimento mais simbólico que poderia receber: o prêmio de honra ao mérito como “Melhor aluna do Ensino Médio”. O título era concedido a quem tivesse o melhor desempenho em notas durante os três anos de curso. Ana conquistou esse lugar com esforço, coragem e determinação — e com o apoio amoroso de quem acreditou nela quando ela quase deixou de acreditar.


Junto com suas amigas da escola, Ana fez um chá de bebê durante a espera de seu pequeno. Por: Arquivo pessoal.
Junto com suas amigas da escola, Ana fez um chá de bebê durante a espera de seu pequeno. Por: Arquivo pessoal.

Chegada do Primogênito


Seu filho nasceu forte e saudável, com 51cm e 4,100kg. Por: Arquivo Pessoal
Seu filho nasceu forte e saudável, com 51cm e 4,100kg. Por: Arquivo Pessoal

No dia 24 de fevereiro de 2006, Ana Paula viveu um dos momentos mais marcantes de sua vida: o nascimento de seu filho, Leonardo. Léo chegou ao mundo cercado de amor, e logo conquistou todos à sua volta com seu jeitinho calmo e tranquilo. Era um bebê sereno — não sofria com cólicas, quase não chorava. Na verdade, parecia ter apenas duas grandes paixões desde os primeiros dias: comer e dormir.


Para Ana, recém mãe de primeira viagem, esse temperamento facilitou os primeiros meses da maternidade. As tardes, antes repletas de compromissos e incertezas, passaram a ser dedicadas a um novo hobby: brincar com Léo até cansá-lo, para depois dormirem juntinhos durante toda a tarde.


Com o apoio da família, Ana conseguiu criar o pequeno com leveza e tranquilidade. Havia ajuda, havia cuidado, havia rede. Mas como toda escolha traz renúncias, sua juventude também foi, aos poucos, redesenhada. Á vontade de sair para ir em pagodes e baladas tiveram que ficar para trás.


Quando Leonardo completou quatro anos, Ana Paula se deparou com um desafio que marcou profundamente sua trajetória como mãe de uma criança preta.

Léo estudava em uma escola particular na zona metropolitana de São Paulo. O ambiente era estruturado, confortável — mas também marcado por uma ausência dolorosa: a representatividade. Entre os coleguinhas de sala, ele era o único aluno negro. Cercado por crianças brancas, sem referências que refletissem sua cor, seus traços, sua história, o pequeno começou a sentir-se diferente.


Foi em um desses dias comuns, após buscá-lo na escola, que Ana ouviu uma pergunta que lhe marcou como mãe:

— “Mãe, por que eu tenho essa cor?”


A frase, dita com a inocência de uma criança, carregava um peso que Ana sentiu no corpo inteiro. Ficou em silêncio por alguns segundos, tentando organizar os pensamentos, tentando proteger o filho daquela ferida que ela mesma conhecia tão bem.


Naquela hora, compreendeu com mais profundidade o tamanho da tarefa que tinha em mãos: criar um menino preto em uma sociedade moldada pelo racismo. Não bastava amor. Seria preciso consciência, força, palavras certas e, sobretudo, orgulho — orgulho daquilo que o mundo tantas vezes tenta apagar.


Foi a partir daquela pergunta que Ana percebeu que a maternidade, para mulheres negras, também é um ato político. E que educar um filho como Léo seria, todos os dias, um exercício de resistência e afirmação.


Maria, Júlia ou Maria Júlia?


A fase adulta chegou para Ana Paula de forma diferente do que ela imaginava na adolescência. Ao lado de Valdir, construiu uma vida sólida e tranquila. Conquistaram o que muitos chamariam de estabilidade: casa própria, carro na garagem, e grande parte dos sonhos de juventude realizados.


Mas ainda havia um desejo antigo, guardado no coração de Valdir: ter uma filha. Sonhava com o “casal de filhos”, para que o mais velho cuidasse de sua irmã caçula, e assim se apoiarem pelo resto da vida.


Enquanto isso, Leonardo crescia. Agora em uma nova escola, com colegas vindos de diferentes contextos, brincava, aprendia, fazia amigos. Certo dia, durante uma atividade sobre árvore genealógica, o menino foi atravessado por uma inquietação. Observando os colegas falando de irmãos, soltou um comentário que ficou ecoando na mente da mãe:


— “A maioria dos meus colegas tem um irmão pra brincar... só eu que não tenho.”


A fala, simples e sincera, plantou uma sementinha no coração de Ana. Começou a imaginar como seria ter outro filho, dar a Léo a chance de viver essa nova experiência de afeto e companhia.


No fim de 2013, a notícia chegou como um presente: Ana estava grávida novamente. Valdir e Léo comemoraram como se já sentissem a presença da nova integrante da família. Dessa vez, com mais estrutura emocional e financeira, a gravidez foi mais tranquila. A família inteira se envolveu com entusiasmo — fazia mais de oito anos que nenhuma criança nascia por ali, e todos se mobilizaram para receber a nova vida.


No início de 2014, veio o momento tão esperado: o exame para descobrir o sexo do bebê. E, para a alegria geral — mas principalmente de Valdir —, uma menininha estava a caminho. Foi um dia de muita felicidade para a família Xavier Rodrigues.


Mas nem tudo é tão simples quando se trata de escolhas em família. Logo surgiu um impasse: o nome. Valdir queria homenagear sua avó e chamá-la de Maria. Já Léo, agora um irmão mais velho cheio de opinião, gostava mesmo era do nome Júlia. Entre os dois, Ana respirou fundo e decidiu tomar as rédeas da situação. Quis agradar os dois — e também colocar sua marca.


Assim nasceu o nome: Maria Júlia. E junto com ele, um apelido carinhoso veio de forma natural — Maju.


Paula e Valdir amavam ir aos rodeios da região. Por: Arquivo Pessoal.
Paula e Valdir amavam ir aos rodeios da região. Por: Arquivo Pessoal.

Uma nova chance


Oito de julho de 2014. Um dia que entrou para a história do país — mas não pelos melhores motivos. Enquanto o Brasil inteiro parava diante das telas para testemunhar a amarga derrota de 7 a 1 contra a Alemanha, Ana Paula vivia, no mesmo horário, uma das maiores vitórias de sua vida: às 15h em ponto, nascia Maria Júlia.


Naquele dia em que muitos choravam por um jogo, Ana chorava de emoção. Maju havia chegado. Pequena, delicada e cheia de vida. Sua presença não apenas completava a família, mas simbolizava um novo começo — uma nova chance de fazer diferente.


Com a filha nos braços, Ana fez uma promessa para si mesma: ensinaria aquela menina preta a amar sua própria imagem, a reconhecer a beleza dos próprios traços, a entender sua importância no mundo. E mais do que isso, a caminhar com dignidade, espalhando afeto e consciência por onde passasse.


Os anos passaram e Maju crescia linda, esperta, cheia de personalidade. E foi durante esse crescimento que Ana viveu um momento transformador, não apenas como mãe, mas como mulher negra. Cuidar do cabelo cacheado da filha tornou-se um ritual sagrado. Com paciência, afeto e conhecimento, ela aprendeu a hidratar, pentear e valorizar cada cacho.


Ver o cabelo de Maju crescendo forte e saudável não era apenas um sinal de saúde capilar — era a realização de um sonho. Era a realização de um desejo antigo. Era o gesto simbólico de alguém que, ao cuidar da filha, cuidava também da própria criança interior.


Maju aprendeu a cuidar de seus cachos aos 8 anos de idade. Por: Arquivo pessoal.
Maju aprendeu a cuidar de seus cachos aos 8 anos de idade. Por: Arquivo pessoal.

Hoje, aos 36 anos, Ana Paula leva a vida de maneira tranquila, cercada pelas coisas que mais ama. Os finais de semana são, quase sempre, no rancho da família — um refúgio de paz com direito a cerveja gelada, risadas espalhafatosas e banho de rio.


Ao lado de Valdir, seu companheiro da vida. Ana divide pequenos prazeres cotidianos: assistir a filmes e séries, brincar com seus animais de estimação, Tito e Iza, e conversar longamente sobre a vida. Os finais de tarde também são preenchidos pelos papos com Maju, que agora, crescida, adora contar as novidades da escola. Já com Léo, que se mudou para outra cidade em busca dos próprios sonhos, o contato se mantém através de ligações frequentes para “matar” a saudade.


Apesar de todas as conquistas, uma chama antiga continua acesa no peito de Ana: seu amor pelo pagode. Entre tantos desejos realizados, um ainda permanece presente em seu coração: o de um dia ir a um pagode ao lado de seu filho, Leonardo.


Porque, no fundo, Ana Paula sempre soube que a vida — assim como o pagode — é feita de encontros, memórias e canções que nunca deixam de tocar dentro da gente.






 
 
 

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