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O pagode nas trilhas da religião e da ancestralidade

Atualizado: 5 de mai.

A relação entre esse gênero e o sagrado afro-brasileiro é indissociável


“O meu lugar é caminho de Ogum e Iansã”, o trecho apresentado é da música “Meu lugar”, do cantor e compositor Arlindo Cruz, importante músico que ajudou a construir e popularizar o que hoje conhecemos como pagode. Nesta letra é evidente a presença de elementos que aos olhos desatentos causam curiosidade, como, de fato quem são Ogum e Iansã? Ambos são orixás, divindades cultuadas dentro das mais diversas religiões de matriz africana. E então, a partir desse questionamento levantado, é possível pensar o pagode para além das plataformas de música, mas também no âmbito do sagrado, pensar nesta expressão musical como uma manifestação afro-brasileira, uma maneira de representação de identidade e resistência. 

Antes de adentrar em todos esses campos já levantados, é necessário ter-se uma noção do que se trata este gênero. O pagode é um estilo musical profundamente ligado ao cotidiano da população brasileira, dono de ritmos extremamente alegres, calorosos e contagiantes, possui como referências músicos como Zeca Pagodinho, Thiaguinho, Péricles e Arlindo Cruz - como já citado.

 Em um primeiro momento, o pagode está relacionado às festas que ocorriam nas senzalas, durante o período escravocrata, era uma maneira dos escravizados manifestarem-se culturalmente. Geralmente esses festejos tinham muita comida, bebida e música de origens africanas. Posteriormente, no século XX, o termo pagode foi utilizado para designar as rodas de samba que ocorriam nos fundos de quintais, em especial aquelas que ocorriam nas periferias do Rio de Janeiro.

Portanto, este conceito pode ser pontuado em dois momentos específicos: o primeiro deles foi a época escravocrata, na qual o termo designava os festejos regados a bebidas e comidas africanas que eram organizadas e festejadas pelos escravizados; o segundo marco seria ao termo referindo-se às rodas de samba que ocorriam nos fundos de quintais dos espaços marginalizados da capital fluminense. 

Beth Carvalho foi fundamental para a popularização do grupo Fundo de Quintal, sendo conhecida como madrinha do samba. No álbum “De pé no chão” a cantora e compositora convidou o grupo para participar dele.
Beth Carvalho foi fundamental para a popularização do grupo Fundo de Quintal, sendo conhecida como madrinha do samba. No álbum “De pé no chão” a cantora e compositora convidou o grupo para participar dele.

Com esse histórico de resistência e celebração enraizado na cultura afro-brasileira, o pagode continuou a evoluir e ganhar novas formas. Um exemplo marcante dessa transformação ocorreu na década de 70, no Rio de Janeiro, na qual foi formado o grupo musical Fundo de Quintal, um conjunto de músicos oriundos das rodas de samba que ocorriam na quadra da escola carnavalesca Cacique de Ramos, escola criada pelo presidente Bira, Ubirany e Sereno. Ainda hoje o grupo é reverenciado como um dos expoentes do pagode. Diversos músicos de renome participaram do grupo, como por exemplo: Bira presidente, Ubirany, Jorge Aragão e Arlindo Cruz.




O pagode e o sagrado afro-brasileiro

A cultura brasileira no geral é arraigada pelas tradições de matriz africana, a culinária, os festejos e as mais diversas expressões musicais, todos esses aspectos sofrem influência dos ritos africanos. Com o pagode não seria diferente. A partir da compreensão do  que é e quais as origens deste estilo musical, fica claro a relação intrínseca que o pagode tem com a cultura afro-brasileira, sendo impossível dissociar ele de suas raízes históricas.

No pagode e no samba, existem manifestações da cultura afro-brasileira. Entretanto, essas manifestações não se limitam apenas às letras das músicas, mas também aos seus ritmos, pois eles são os ritmos tocados nos terreiros - espaços religiosos onde é professada a religiosidade de matriz africana. O Agueré de Oxóssi - toque feito no candomblé para reverenciar e evocar Oxóssi, uma de suas divindades - por exemplo, é um dos ritmos que baseia o principal toque do pagode. Outro ritmo presente no samba é o Alujá de Xangô - batida feita para evocar essa divindade. Outro exemplo dessa influência são as baterias das escolas de samba, que são fundamentadas nos ritmos do sagrado afro-brasileiro, além dos toques, seus repertórios possuem temáticas ligadas à religiosidade, muitas vezes abordando elementos como liturgias, orixás e entidades.


As celebrações das religiões de matriz africana são arraigadas por uma musicalidade própria e vestimentas características. Exemplos disso são instrumentos como o atabaque e vestimentas como o torso utilizado na cabeça das mulheres desse sagrado. Foto: acervo pessoal de Baba Oxalazinho
As celebrações das religiões de matriz africana são arraigadas por uma musicalidade própria e vestimentas características. Exemplos disso são instrumentos como o atabaque e vestimentas como o torso utilizado na cabeça das mulheres desse sagrado. Foto: acervo pessoal de Baba Oxalazinho

Isley Borges da Silva Junior, jornalista mestre em geografia com pesquisas na geografia cultural e geografia da religião, e doutor em estudos literários, afirmou: “É indissociável a relação entre o samba, o pagode e os toques sagrados da cultura afro-brasileira”. Em seu doutorado, o jornalista defendeu a tese que relaciona a espacialidade do sagrado afro-brasileiro com a performance da intérprete Maria Bethânia, por meio desta defesa Isley pôde demonstrar a intrínseca relação entre a cotidianidade brasileira, expressa na música popular brasileira produzida pela intérprete, e as tradições de matriz africana, em especial o sagrado.

A partir das raízes históricas do pagode, dos ritmos do sagrado afro-brasileiro presente neste estilo musical, as temáticas presentes nos repertórios, além das afirmações e pesquisas desenvolvidas por Isley fica evidente a profunda relação que o pagode tem com a religiosidade de matriz africana, perpassando por aspectos além da letra e do som, mas também em aspectos histórico-culturais. 


Cenário local de Uberlândia

Trazendo essas reflexões para a maior cidade do triângulo mineiro, observa-se um espaço de efervescência cultural de matriz africana, onde essas manifestações ocorrem fortemente. A cidade possui muitos locais onde a fé afro-brasileira pode ser professada, diversas rodas e escolas de samba. Um exemplo dessa manifestação é o grupo musical “Meninos do Oxalazinho” - a banda é um grupo uberlandense de músicos que expressam sua religiosidade por meio do pagode, foi fundada pelo Baba Oxalazinho, um babalorixá - sacerdote que expressa autoridade dentro da religião de matriz africana, popularmente conhecido como pai de santo.

Os meninos do Oxalazinho é uma banda uberlandense que retrata suas vivências religiosas por meio do pagode. Os integrantes da banda frequentam o terreiro do sacerdote do Babalorixá Oxalazinho. Foto: acervo pessoal de Baba Oxalazinho.
Os meninos do Oxalazinho é uma banda uberlandense que retrata suas vivências religiosas por meio do pagode. Os integrantes da banda frequentam o terreiro do sacerdote do Babalorixá Oxalazinho. Foto: acervo pessoal de Baba Oxalazinho.

A banda surgiu em meados de 2024, segundo Oxalazinho, a criação dela  foi intuitiva e natural, baseada nas vivências religiosas que os integrantes possuem dentro do sagrado afro-brasileiro, com costumes de tocarem instrumentos de percussão, como o atabaque, por exemplo. A sua atuação enquanto pai de santo o influenciou fortemente na área musical, uma vez que para exercer esse cargo de sacerdote é necessário conhecimentos em cânticos e em línguas estrangeiras como o iorubá, visto que é comum na religiosidade afro-brasileira a presença de canções que são proferidas em línguas africanas, como o kibundo também. Essa familiaridade com a musicalidade cobrada a sua função o ajudou a desenvolver e pensar a banda.

O baba afirma que para muitos cantores brasileiros o dom de cantar e aptidão para a música residem na ancestralidade e na vivência religiosa. “Sou fruto disso também, os meninos também que fazem parte da banda Meninos do Oxalazinho são crianças que cresceram dentro da religiosidade africana, no culto de matriz africana” - comenta o pai de santo.


O congado

Para além do pagode, Uberlândia possui outras manifestações sagradas, sendo uma das mais importantes o congado.

Ele é extremamente importante culturalmente, é uma tradição cultural afro-brasileira oriunda dos negros escravizados, enquanto a cidade ainda era apenas um pequeno povoado. Essa rica tradição reverencia Nossa Senhora do Rosário e São Benedito. Ela começa em meados de Agosto e se prolonga até Outubro, durante esse período, os ternos do Congado realizam ensaios, novenas e visitas aos devotos. 

Até que no segundo domingo de Outubro ocorre o festejo, ainda na madrugada são lançados fogos para avisar a chegada da baterias, e então cada terno sai de seu quartel, passa pela casa do Presidente da Irmandade e percorre por importantes pontos da cidade como a avenida Floriano Peixoto até chegar na Igreja de Nossa Senhora do Rosário. No período da tarde os ternos retornam à Igreja e partem pelo centro da cidade em procissão, após isso voltam novamente à igreja para a coroação dos reis e rainhas do ano, logo depois retornam para seus respectivos quarteis. Na segunda os ternos realizam visitas entre si e em casa de devotos, até que à noite realizam o desfile de despedida em frente à Igreja do Rosário. Atualmente o congado é considerado um patrimônio histórico e cultural.


Atualmente existem cerca de 24 ternos filiados à Irmandade de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito em Uberlândia, cada um com sua tradição e cultura, mas o mesmo amor pelo Congado. Foto: disponível no portal da prefeitura de Uberlândia.
Atualmente existem cerca de 24 ternos filiados à Irmandade de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito em Uberlândia, cada um com sua tradição e cultura, mas o mesmo amor pelo Congado. Foto: disponível no portal da prefeitura de Uberlândia.


A tradição, para mais que o festejo, deve ser considerada uma expressão de sujeitos marginalizados que expressam sua cultura afro-brasileira. Entretanto, na sociedade a sua importância é esvaziada, e o congado é reduzido unicamente à festa, aos desfiles dos ternos, às bandeiras e roupas, omitindo o aspecto identitário de representar as vivências do sujeito negro que a tradição tem; aos olhos desatentos o congado é uma tradição católica que louva os santos, entretanto ele possui outro aspecto fundamental, que é de ser um movimento de ressignificação e expressão da cultura afro-brasileira, um ato de retomada das tradições africanas.


Essa tradição possui caráter de existência e resistência, todos os ternos buscam expressar seus elementos religiosos, do ponto de vista cultural, eles buscam retratar questões identitárias, representações do sujeito negro dentro da sociedade brasileira. O Congado, portanto, deve ser compreendido como uma manifestação da identidade de um grupo marginalizado na sociedade, uma ressignificação dos ritos africanos para a realidade brasileira, uma retomada da ancestralidade. 

Gerson de Sousa, jornalista e integrante do corpo docente do curso de jornalismo da Universidade Federal de Uberlândia, realiza pesquisas sobre a cultura popular, abordando inclusive o congado ao pesquisar sobre o terno “Sainha”, um dos ternos mais tradicionais do Congado na cidade de Uberlândia. Gerson  reforça o aspecto de retorno à ancestralidade que o Congado possui ao afirmar que “Quem está no público, não está vendo preto velho, está vendo os instrumentos, está vendo os cantos (...), mas preto velho está lá”. Segundo o professor universitário esta é uma expressão cultural que envolve questões políticas, uma vez que o festejo expressa o sujeito negro dentro da sociedade, manifestando suas realidades vivenciadas além do seu sagrado religioso. 


O papel na luta contra a discriminação religiosa

Ao longo de tudo que foi exposto nesta reportagem, fica evidente a profunda relação que essas manifestações culturais têm com o sagrado afro-brasileiro. Tanto o pagode, quanto o congado propiciam um enfrentamento ao racismo e à intolerância religiosa. A simples existência dessas expressões por si só já é um ato de resistência, uma vez que possuem um caráter identitário, essa capacidade de refletir o cotidiano e as vivências de um grupo marginalizado, além de resgatar a ancestralidade desses sujeitos negros.

Diogo Nogueira, importante cantor do pagode, em “ciência da paz” disse: “Quem escolheu o seu axé, não deve ocultar não, onde cabe o amor cabe o respeito e vamos respeitar”, por meio dessa música o cantor deixa evidente a busca pelo respeito e a valorização das religiões de matriz africana. Por meio do pagode, Diogo expressa seu orgulho pela religiosidade, além de clamar pelo respeito, provando que este gênero musical se estende para além das rodas de samba, caixas de som e fone de ouvido, mas também participa na luta contra a intolerância religiosa.

Já Gerson de Sousa afirma ainda sobre o congado que a cada vez que os ternos se reúnem, sejam nas novenas, nos encontros, nos leilões, acontece uma luta anti racista, uma vez que retoma as tradições afro-brasileiras e afirma a identidade do negro, a existência do congado por si só é um movimento anti racista. Por meio disso fica evidente o papel do congado também no enfrentamento ao preconceito religioso.








 
 
 

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© 2025 Por Leonardo Xavier, João Pedro Mesquista e Ramon de Oliveira

O blog é um projeto interdisciplinar do 2° Período do curso de Jornalismo

 

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